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Postagens

Sobre silenciamentos e apagamentos

"Angela Davis". Detalhe de xilogravura de capa de livreto de Daniella Bento. Por Lucélia Borges Em minha trajetória como artista visual e pesquisadora das tradições populares, tenho me deparado com muita coisa, e o fato de ser mulher e atuar em meio dominado por homens fez meu percurso ser mais difícil e acidentado do que eu sonhava. Isso não quer dizer que, em meio a tantas tentativas de silenciamento, de desqualificação e de alienação, também não haja apoio, acolhimento, parceria e respeito. Constatei, não faz muito tempo, que entre muitas pessoas, independentemente do gênero, que se “vendem” como politizadas, combatentes dos apagamentos históricos das minorias,  impera uma discrepância acentuada entre o discurso e a prática, e a indignação, apoio e repúdio são seletivos. Descobri, inclusive, uma palavra nova, manterrupting (*) , que se encaixava perfeitamente com a situação pela qual passei, em reunião da Comissão de Salvaguarda da Literatura de Cordel de São Paulo, e pa...

Homenagem ao gênio Guimarães Rosa

Guimarães Rosa, o gênio geraizeiro.  Considerado um dos maiores escritores brasileiros, João Guimarães Rosa (1908-1967) é sinônimo do sertão norte-mineiro, dos gerais (como o povo alude ao cerrado em Minas e na Bahia) e de uma prosa vigorosa que une tradição e reinvenção como nunca se viu antes em nosso país. Foi este autor genial, romancista, contista, memorialista, autor do seminal Grande sertão: veredas e de obras antológicas como Sagarana e Noites do sertão , que retratei em xilogravura. Matriz entintada retratando o autor de Sagarana . O pedido para que eu entalhasse na madeira o gênio de Cordisburgo veio do poeta e capoeirista Olegário Alfredo, o Mestre Gaio, com vistas a uma exposição durante a Bienal Mineira do Livro, que reuniria também outros artistas. Dei preferência a uma cena doméstica, fugindo um pouco à imagem mais explorada do romancista, tendo o sertão mineiro ao fundo. E como gosto de gatos, e percebi que ele também os amava, retratei-o ao lado de um bichano. ...

Novo livro do poeta Costa Senna

O poeta cearense Costa Senna lança mais um livro, Histórias por um mundo melhor , o terceiro pela Global Editora, e desta vez eu assino as ilustrações, em xilogravuras. O livro é composto por seis poemas, cada um deles voltado a temas como ética, cidadania e inclusão, discutidos com leveza, mas também com profundidade.  Abaixo, a descrição do livro conforme publicada no site da Amazon : " Rima que encanta, verso que ensina, literatura que transforma. Assim é Histórias por um mundo melhor, mais um trabalho primoroso do poeta, ator, compositor e cordelista Costa Senna. Publicado pela Global Editora, o livro reúne cinco narrativas em cordel, entre fábulas, reflexões e releituras de contos clássicos, reafirmando a vocação do autor para educar e inspirar por meio das palavras. Com apresentação de Marco Haurélio e ilustrações de Lucélia Borges, a obra navega pelo melhor da tradição oral e da literatura popular, trazendo a musicalidade do repente e o encanto da poesia rimada. Do cons...

Mulheres na Xilogravura

Em uma postagem anterior, falei da invisibilidade a que as mulheres foram relegadas ao longo dos anos ao ponto de a palavra Xilogravadora simplesmente ser ignorada pelo Google, o site de pesquisas mais acessado no mundo. Também falei, no início dos trabalhos neste blog, do preconceito e dos ataques sofridos, aparentemente de forma combinada, durante reuniões entre os detentores da Literatura de Cordel e seus bens associados, incluindo uma tentativa grotesca de silenciamento, ou Mansplaining , seguida da acusação de ser uma "infiltrada", pelo fato de não ser cordelista, mas xilogravadora. Lamentavelmente, tais ataques não mobilizaram o ecossistema do cordel em São Paulo, e nenhuma retratação pública foi feita.  Para cima do medo, a coragem. Para cima do preconceito, o trabalho e o respeito pela arte.  Por isso, e por tudo que enfrentamos, de cabeça erguida e consciência tranquila, a iniciativa do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular do Rio de Janeiro, entre os dias 4...

Contos encantados do Brasil

Um dos livros que mais gostei de ilustrar foi, sem dúvida, Contos encantados do Brasil, publicado em 2022, com o selo da Aletria. Este livro reúne contos recolhidos pelo companheiro Marco Haurélio da tradição oral baiana. Optei por ilustrá-lo com a técnica da xilogravura, inspirando-me nas gravuras quinhentistas de Dürer e em Gustave Doré. A editora apresentou duas opções de capa, assinadas por  Caroline Gischewski, responsável pelo projeto gráfico, a partir de duas propostas minhas: uma capa colorida e outra em duas cores.  Abaixo, compilamos trechos do prefácio escrito pelo autor, Marco Haurélio: Se perguntarmos a alguém por que faz determinado gesto, ele poderá não saber o motivo, e talvez responda que o faz “inconscientemente” ou aprendeu com outra pessoa… que aprendeu com outra pessoa, que aprendeu com outra… De forma semelhante, os contos ditos tradicionais se propagam. Ouvimos, repetimos, lembramos, esquecemos, ampliamos, reduzimos. Contamos. E, quando contamos, tr...

Como a xilo entrou no cordel?

  Uma pergunta que sempre me fazem quando ministro minhas oficinas é: quando a xilogravura entrou na literatura de cordel? Quem pesquisa tanto o cordel quanto a xilo afirma ter sido no ano de 1907, quando o famoso poeta popular e editor Francisco das Chagas Batista (1882-1930) fez uso de uma gravura retratando o cangaceiro pernambucano Antônio Silvino (Manoel Batista de Morais) na página interna de um folheto de sua autoria. O título da obra de 48 páginas, bem resumido, era simplesmente Antônio Silvino , mas vinha com uma farta descrição: “A história de Antônio Silvino, contendo o retrato e toda a vida de crimes do célebre cangaceiro, desde o seu primeiro crime até a presente data – Setembro de 1907”. Por que Chagas Batista teria optado por uma página interna e não pela capa, como seria mais lógico? Talvez pensasse que, ao estampar a imagem somente no “miolo” do folheto, estimularia o público a comprá-lo, para conhecer o retrato do famoso facínora. Mas isso é só uma especulaç...

A peleja da Xilo com a IA

Corujinhas . Xilogravura produzida durante oficina ministrada pelo mestre J. Borges.  Foto: Thiago Lima. Nasci em Bom Jesus da Lapa, a meca sertaneja segundo Euclides da Cunha, e cresci numa comunidade rural, a Agrovila 07, hoje parte do município de Serra do Ramalho, na Bahia. Cresci brincando nos quintais, ouvindo versos das cantigas de roda, as histórias imateriais narradas por minha bisavó Maria Magalhães Borges, que me criou desde o nascimento, e os enredos fantásticos da literatura de cordel. Vi, muitas vezes, meu avô materno, Pedro Pardim, carpinteiro de ofício, beradeiro do São Francisco, transformando madeira em canoas, remos, colheres de pau, vasilhas e até carros de boi. Era um processo demorado, que exigia muitos cuidados, feito com apuro e respeito. Acredito que minha vocação como xilogravadora tenha vindo daí, ainda que tenha começado para valer nessa arte somente em 2017. Há gravuras que exigem mais tempo, da pesquisa ao entalhe até a impressão. A madeira, com seu...