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Como a xilo entrou no cordel?

 

Uma pergunta que sempre me fazem quando ministro minhas oficinas é: quando a xilogravura entrou na literatura de cordel? Quem pesquisa tanto o cordel quanto a xilo afirma ter sido no ano de 1907, quando o famoso poeta popular e editor Francisco das Chagas Batista (1882-1930) fez uso de uma gravura retratando o cangaceiro pernambucano Antônio Silvino (Manoel Batista de Morais) na página interna de um folheto de sua autoria.

O título da obra de 48 páginas, bem resumido, era simplesmente Antônio Silvino, mas vinha com uma farta descrição: “A história de Antônio Silvino, contendo o retrato e toda a vida de crimes do célebre cangaceiro, desde o seu primeiro crime até a presente data – Setembro de 1907”.

Por que Chagas Batista teria optado por uma página interna e não pela capa, como seria mais lógico?

Talvez pensasse que, ao estampar a imagem somente no “miolo” do folheto, estimularia o público a comprá-lo, para conhecer o retrato do famoso facínora. Mas isso é só uma especulação, pois a verdadeira razão nunca saberemos. Com título diferente, ou criando novos enredos, como Luta de Antônio Silvino com uma onça, Chagas Batista seguiu usando a gravura de autor desconhecido por alguns anos.

O certo é que Leandro Gomes de Barros, que fez farto uso das chamadas capas-cegas (capas sem ilustração, mas com adornos ou arabescos), reaproveitou a imagem em um de seus folhetos de maior sucesso no período: Antônio Silvino, o rei dos cangaceiros. Percebe-se, na imagem usada por Leandro, um retoque em preto um pouco acima dos joelhos do personagem. Como a imagem muito provavelmente foi extraída de um jornal, o retoque se deu sobre um vinco resultante de uma dobra. Outra dobra pode ser percebida no chão logo abaixo dos pés de Antônio Silvino.

Curiosamente, a figura, mesmo sofrendo o destaque do tempo, continuou a ser usada até que, restassem basicamente os contornos.



Em 1925, com Antônio Silvino na prisão, a figura da vez no Cangaço era Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. E Francisco das Chagas Batista, há muito restabelecido no seu estado natal, a Paraíba, lançou pela Popular Editora, de sua propriedade a História completa de Lampeão (sic.), na qual a mesma figura, agora recriada em um traço estilizado, que seria determinante na xilogravura nordestina, principalmente aquela produzida em Pernambuco nas décadas seguintes, conforme o saudoso pesquisador Jeová Franklin, cujo livro Xilogravura popular na literatura de cordel (LGE Editora, 2007), nossa principal referência.

Arievaldo Viana (1967-2020) e Marco Haurélio, no folheto Cem anos de xilogravura na literatura de cordel, lançando em 2007 pela Queima-Bucha, contaram um pouco dessa fascinante história. O folheto foi lançado em Brasília, numa exposição com curadoria de Jeová Franklin, que celebrava esse marco histórico. Abaixo, o trecho inicial:

Brasília está promovendo
Uma festa de cultura
Que trata sobre os 100 anos
Da nossa Xilogravura
Impressa sobre o papel
Dos folhetos de cordel
Popular literatura.
 
O cordel é mais antigo
Vem do século dezenove
Com Leandro e Pirauá
Começou, ninguém reprove
Minha rima, pois agora
Eu ando Nordeste afora
E tiro a prova dos nove!
 
Outros pioneiros são
João Melchíades Ferreira
Galdino da Silva Duda
Um poeta de primeira
Francisco Chagas Batista
Também foi um grande artista
Da cultura brasileira.
 
Mil novecentos e sete
Conforme a história apura
Foi o ano em que o cordel
Casou com a xilogravura
Num “taco” bem pequenino
Gravaram Antônio Silvino
Numa tosca iluminura.
 
Antes disso só havia
A chamada “capa cega”
Com letras e arabescos
Assim a história prega
E quem conhece a história
Puxando pela memória
Essa verdade não nega.
 
Agora eu quero falar
De um grande historiador
É nosso Jeová Franklin
Poeta e pesquisador
Da cultura popular
E é quem pode atestar
Da gravura o seu valor.

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