Mulheres na Xilogravura

Em uma postagem anterior, falei da invisibilidade a que as mulheres foram relegadas ao longo dos anos ao ponto de a palavra Xilogravadora simplesmente ser ignorada pelo Google, o site de pesquisas mais acessado no mundo. Também falei, no início dos trabalhos neste blog, do preconceito e dos ataques sofridos, aparentemente de forma combinada, durante reuniões entre os detentores da Literatura de Cordel e seus bens associados, incluindo uma tentativa grotesca de silenciamento, ou Mansplaining, seguida da acusação de ser uma "infiltrada", pelo fato de não ser cordelista, mas xilogravadora. Lamentavelmente, tais ataques não mobilizaram o ecossistema do cordel em São Paulo, e nenhuma retratação pública foi feita. 

Para cima do medo, a coragem. Para cima do preconceito, o trabalho e o respeito pela arte. 

Por isso, e por tudo que enfrentamos, de cabeça erguida e consciência tranquila, a iniciativa do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular do Rio de Janeiro, entre os dias 4 de outubro e 24 de novembro de 2024, abrindo espaço para uma exposição de xilogravadoras, na Sala do Artista Popular, é um passo gigantesco para derrotarmos o machismo e também o preconceito contra artistas das goivas, sejam homens ou mulheres. 

O texto de abertura do catálogo, "Mulheres na xilogravura,  de Ana Lima Kallás, responsável pela pesquisa, sintetiza bem essa nossa caminhada:

"Fazer xilogravura é trabalhar com um tempo do fazer que escapa ao ritmo acelerado e imediato das sociedades contemporâneas. Buscar a madeira, cortá-la, lixá-la, observá-la em seus veios e fissuras próprios, conceber o desenho a partir do movimento da madeira, entalhá-la, passar a tinta e imprimir. Para cada etapa, um tempo do fazer, da espera, do olhar, do retoque. As madeiras podem ser várias: a melhor, a pior, a possível, a reaproveitada, a ressignificada, a de dois lados. A xilogravura pode ter tamanhos diversos, com mais ou menos detalhes. Seu processo é sempre analógico, tátil e coautoral; dialoga necessariamente com a madeira. Foge da realidade virtual e do imediatismo.

Esse modo de fazer, com origens longevas na China do século V e no Brasil pós-criação da Imprensa Régia em 1808, configura-se como uma prática cultural tradicional, que exercida por artistas diversos, homens e mulheres, jovens, adultos e idosos, com motivos populares ou modernos, traz uma concepção de vida do passado que apresenta importantes contribuições ao presente. Fazer xilogravura combina a materialidade tátil da madeira e a imaterialidade do tempo singular e, por isso, é associada por artistas a um processo de cura e autocuidado.

A historicidade da xilogravura no Brasil consiste em mudanças ao longo do tempo. Seu nascimento esteve atrelado à literatura de cordel, ilustrando as capas de folhetos, embora as primeiras capas de cordel tenham sido feitas com desenhos a lápis. Em 2018, quando a Literatura de Cordel foi registrada como patrimônio cultural imaterial do Brasil pelo Iphan, inscrita no Livro de Registro das Formas de Expressão, a xilogravura recebeu grande atenção, sendo considerada um bem associado por fornecer identidade visual ao folheto. O alto contraste das imagens chamou a atenção dos leitores e ampliou o público dos cordéis. Apesar da forte associação, cordel e xilo também caminharam de forma paralela e independente. A xilo foi usada para a produção de ilustrações que estampavam jornais, revistas e rótulos de produtos. Tais imagens eram feitas artesanalmente por gravadores de imagens de santos, os “santeiros”, e eram talhadas individualmente com ferramentas improvisadas, como era usual nas corporações de ofício medievais.

Matriz para ilustrar poema de Auritha Tabajara.

As imagens gravadas na madeira e então impressas evocam imaginários de caráter histórico, social, literário, plástico e imagético, constituindo identidades e objetos de memória. Hoje, a xilo está em uma multiplicidade de produções: estampa livros, teses acadêmicas, revistas, jornais, camisetas, bolsas, marcas e folhetos. Seu fazer é diverso e alcança públicos também bastante diversos.

Se até o passado recente essa arte era feita predominantemente por homens, hoje acompanhamos um movimento de visibilização das mulheres xilogravadoras, não mais assistentes e auxiliares de maridos ou irmãos artistas, mas protagonistas de sua própria produção artística. Elas estão, permanecem, movimentam-se, criam, expõem.

Elas podem!

Apresentaremos, a seguir, a produção de quatro xilogravadoras com trajetórias diversas, residentes em São Paulo: Regina Drozina, Nireuda Longobardi, Lucélia Borges e Gabrielle Longobardi. Todas têm grande inspiração na xilogravura nordestina, em suas várias escolas, apreciando os trabalhos de Nena e J. Borges, José Lourenço, Francorli, Samico, Jô Oliveira, Stênio Diniz, Marcelo Soares, Jerônimo Soares, Ciro Fernandes, entre outros nomes.".

Regina, Nireuda, Lucélia, e a pesquisadora Ana Kallás.



Fotografias: Francisco Moreira da Costa

Comentários

  1. Lindo seu blog, para combinar com a grandeza de seu trabalho. Parabéns e sucesso!!! Invisibilidade nunca mais!

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  2. Parabéns, meninas ! O talento de vocês para essa maravilhosa arte transborda, transcende, vai além de qualquer preconceito. Que vença a arte!

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  3. Avante à mulher artista da xilogravura! O lugar da mulher é onde quer estar!

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