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A peleja da Xilo com a IA

Corujinhas. Xilogravura produzida durante oficina ministrada pelo mestre J. Borges. 
Foto: Thiago Lima.

Nasci em Bom Jesus da Lapa, a meca sertaneja, segundo Euclides da Cunha, e cresci numa comunidade rural, a Agrovila 07, hoje parte do município de Serra do Ramalho. Cresci brincando nos quintais, ouvindo versos das cantigas de roda, as histórias imateriais narradas por minha bisavó Maria Magalhães Borges, que me criou desde o nascimento, e os enredos criativos da literatura de cordel. Vi, muitas vezes, meu avô materno, Pedro Pardim, carpinteiro de ofício, beradeiro do São Francisco, transformando madeira em canoas, remos, colheres de pau, vasilhas e até carros de boi. Era um processo demorado, que exigia muitos cuidados, feito com apuro e respeito. Acredito que minha vocação como xilogravadora tenha vindo daí, ainda que tenha começado para valer nessa arte somente em 2017.

Há gravuras que exigem mais tempo, da pesquisa ao entalhe até a impressão. A madeira, com seus nós e irregularidades, é sempre coautora nesse processo. Como trabalho muito com formas arredondadas e sinuosas, utilizo diferentes ferramentas e faço questão de registrar cada etapa até me dar por satisfeita. Como o mundo editorial exige uma pressa que vai de encontro ao meu ofício, busco sempre dialogar com as editoras, geralmente mulheres, que têm sido muito sensíveis e acolhedoras, entendendo que pressa e qualidade, em se tratando dos processos artesanais, nem sempre caminham juntas.

Por isso, encaro sempre com um misto de indignação e vergonha a utilização de inteligência artificial nas capas de folhetos de cordel. Algumas, sem indicação de que se trata de uma imagem gerada por IA, são até assinadas, o que aumenta ainda mais a vergonha.

Não tenho qualquer pretensão de empreender uma cruzada contra a Inteligência Artificial, batalha que, antes de começar, já está perdida. A IA, como muitos fazem questão de afirmar, “veio para ficar”, e eu não tenho tempo nem saúde para ficar brandindo minhas goivas contra os moinhos de ventos que sopram em direção a um futuro desumanizado.

Frame do clássico A Viagem de Chihiro (2001), de Hayao Miyazaki. 

Se nem o gênio da animação Hayao Miyazaki, cofundador dos Studio Ghibli, está imune aos processos de apropriação indevida e de banalização de sua arte, no esquema viral que atrai fãs e gente que nunca ouviu falar dele, não serão os artistas populares que terão salvaguardados os seus direitos e a sua identidade.

Ainda assim, sem julgamentos, quero fazer um desafio aos colegas cordelistas que se valem desse recurso, ainda não alcançado pelas leis de proteção aos diretos autorais em nosso país: se eu “compor” um cordel usando algumas dessas ferramentas de IA, pondo na capa uma xilogravura “real”, o meu cordel deve ser reconhecido como tal?

Sim ou não?

Se sim, devemos esquecer tudo o que se produziu até hoje, dos clássicos aos contemporâneos, pois bastam alguns comandos para que nasça um cordel, ainda que sem a “alma” de um autor e sem a mistura de elementos conscientes e inconscientes que balizam toda obra artística.

Se não, por que vocês consideram legítima a utilização de uma capa que dispensa um “autor”, nascida do processo de bricolagem dos algoritmos, que pegam um pedacinho aqui, outro ali, até alcançar um resultado que eu, como xilogravadora que sou, posso afirmar que é duvidoso?

Ou seja, se pode um, por que não o outro?

Finalizo: antes do surgimento da escrita, a transmissão oral, a pintura (e a escultura em grau menor) contaram as histórias que hoje ajudam a preencher lacunas no tocante a muitas áreas do saber. Precisamos continuar a contar as nossas histórias, sem abrir mão da subjetividade, abdicar de nossa humanidade.