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Contos encantados do Brasil

Um dos livros que mais gostei de ilustrar foi, sem dúvida, Contos encantados do Brasil, publicado em 2022, com o selo da Aletria. Este livro reúne contos recolhidos pelo companheiro Marco Haurélio da tradição oral baiana. Optei por ilustrá-lo com a técnica da xilogravura, inspirando-me nas gravuras quinhentistas de Dürer e em Gustave Doré. A editora apresentou duas opções de capa, assinadas por Caroline Gischewski, responsável pelo projeto gráfico, a partir de duas propostas minhas: uma capa colorida e outra em duas cores. 

Abaixo, compilamos trechos do prefácio escrito pelo autor, Marco Haurélio:

Se perguntarmos a alguém por que faz determinado gesto, ele poderá não saber o motivo, e talvez responda que o faz “inconscientemente” ou aprendeu com outra pessoa… que aprendeu com outra pessoa, que aprendeu com outra… De forma semelhante, os contos ditos tradicionais se propagam. Ouvimos, repetimos, lembramos, esquecemos, ampliamos, reduzimos. Contamos. E, quando contamos, trazemos para junto de nós, para o nosso círculo familiar, narradores e mais narradores que, ao longo de séculos, milênios talvez, garantiram que as histórias não se perdessem. A trajetória dos contos populares, com destaque para sua incrível capacidade de adaptação, tem suscitado acalorados debates e fomentado o surgimento de algumas escolas, cuja sobrevivência dependeu sempre mais do poder de argumentação de seus membros do que da sua capacidade de, efetivamente, comprovar os seus postulados. Não é nosso propósito aqui enumerar as escolas do Folclore, nomear seus membros ou exumar as suas doutrinas. Importa-nos, por enquanto, tão somente, chamar a atenção para o conto popular, objeto do presente trabalho, uma recolha abrangente, compreendendo um significativo número de versões, que vão desde os contos mais complexos, como o de cunho maravilhoso, aos aparentemente mais simples, e, quando escrevo “mais simples”, refiro-me a questões puramente formais, já que, na contística popular, toda pedra é preciosa. Mesmo o que não reluz é ouro.


O conto popular, também chamado estória (ou história) de Trancoso, da Carochinha, é uma das mais antigas formas de expressão verbal, contemporâneo dos primeiros grupos humanos, irmão do mito, com o qual se confunde, ainda que este se apoie num “ato de crença, de crença em seu objeto, sem o que perde sua base”.1 Irmanado ainda à lenda e à fábula, alimento intelectual de todos os povos, de todas as épocas, o conto preserva, quase sempre de forma cifrada, informações sobre hábitos, usos, costumes, provérbios, crenças, estatutos de épocas as mais diversas, abarcando, praticamente, em sua amplitude temática, todos os assuntos relativos à ciência do Folclore; constitui-se, porém, em parte inseparável do todo, “como a mão com relação ao corpo ou a folha com relação à árvore”. Difere da lenda e do mito por sua universalidade, e com isso não queremos dizer que todos os contos alcançam todos os cantos, e, sim, que, aonde chegam, recebem melhor acolhida graças à sua poderosa capacidade de adaptação.

"Canivetão". Xilogravura de Lucélia Borges. 

A maior parte dos contos maravilhosos difundiu-se por uma vasta área geográfica que vai da Índia à Irlanda, ampliada, depois, pelo processo colonizador. Chegaram ao Brasil, certamente, com as primeiras levas de colonos portugueses e, misturados às narrativas ameríndias, nas quais predominava o fantástico, e às histórias trazidas das Áfricas, ganharam novo colorido no Nordeste primeiramente, mormente nos sertões povoados de assombros milenares. No conto, nada é novo e nada é velho. As transformações atendem a uma dinâmica muito particular que envolve questões externas, como a influência do ambiente e dos costumes e crenças, e internas, estas atinentes às dimensões alegórica e simbólica.

Nas versões sertanejas do conto da Cinderela, a moça não vai ao baile no palácio do príncipe, mas à missa, realiza tarefas típicas do sertão de outrora, como adicionar água aos potes ou alimentar os animais das velhas que a auxiliarão doravante. Os motivos essenciais do conto, no entanto, pouco mudam, qualquer que seja a época ou o lugar. O sapato que possibilita o casamento de Cinderela com o príncipe, por exemplo, é um tema que pode ser rastreado em milhares de versões. Era parte de um rito matrimonial introduzido no Egito, provavelmente durante o domínio persa, nutrindo a lenda de Ródope, a cortesã grega que vem a desposar o faraó. É o que nos conta Heródoto: uma águia arrebata o sapato da nossa heroína e o deixa cair sobre o faraó, fazendo com que o soberano do Egito envide todos os seus esforços para encontrar a dona do tal calçado que tanto o fascinara (História, tomo II, XCVIII). O teste de casamento, por meio do experimento do calçado, era, segundo informação de Luís da Câmara Cascudo, “ainda popular na Alemanha do século XVI”, aproximadamente trezentos anos antes de os Irmãos Grimm registrarem a versão mais famosa da história.

"A princesa da Cara de Pau", versão brasileira de "Pele de Asno".
Xilogravura de Lucélia Borges

Todos os contos reunidos neste livro foram colhidos diretamente da fonte da memória, isto é, foram ouvidos, anotados e fixados, mantendo-se sua estrutura básica e conservando, quase sempre, as marcas da oralidade. Os narradores, guardiães da tradição, são identificados ao final de cada história. Um deles, o senhor José Marques de Sousa, apelidado carinhosamente de Zé Cabeça, falecido em 2019, por ocasião da coleta das histórias, em 2015, afirmou ter 107 anos de idade. Além de Bela Inês e a Moura Torta Panela, colher e chicote, narrou outros contos, publicados no livro Vozes da tradição. Três histórias (Branca Flor, Bestore e a princesa Maria Borralheira) foram publicadas originalmente no livro O Príncipe Teiú e outros contos brasileiros, de circulação muito restrita.

No tangente à divisão, optamos pelo Sistema ATU (Aarne-Thompson-Uther), adotado em outras publicações nossas, com uma única alteração: começamos pelos contos maravilhosos, ou de encantamento, mais numerosos, e não pelos contos de animais, como seria de se esperar, por se tratar de uma tabela alfanumérica. Contamos, como sempre, com o apoio dos professores Paulo Correia e José Joaquim Dias Marques, do Centro de Estudos Ataíde Oliveira (CEAO), da Universidade do Algarve, Faro, Portugal.

"Maria da Cobrinha". Xilogravura de Lucélia Borges.

Recolhidos, em sua maioria, no sertão baiano, universais nos motivos e temática, nacionais nas cores, sotaques, variantes linguísticas e no colorido da flora e fauna, os nossos contos comprovam o que foi dito pelo grande escritor mineiro João Guimarães Rosa, que também bebeu na fonte da tradição: “O sertão é o mundo.” Mundo que vira mar, como previu o beato Antônio Conselheiro, mar de histórias, água de vertente que, teimosa, ainda cisma em correr.

Italo Calvino, no posfácio ao Pentameron, em 1974, afirma que “el mundo de las fábulas és um mundo matinal”, e, no caso de Basile, manifesta-se sempre com uma metáfora distinta. Na nossa coletânea, alvoradas e crepúsculos se alternam em muitas narrativas, mas a mensagem, implícita, é a de que as histórias sempre vêm à luz. Basta que tomemos assento e abramos o coração e os ouvidos, para que a jornada comece. Ou recomece, quando, a cada escuta, espaço e tempo se transfiguram e podemos contemplar, embevecidos, as cores de um entardecer que jamais deixou de ser manhã.

MAIS INFORMAÇÕES:

Título original: Contos Encantados do Brasil

2022, 1ª edição

337 páginas, 13,5 x 20,5 cm

ISBN: 9786586881851

Autor: Marco Haurélio

Ilustrações: Lucélia Borges


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