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Sobre silenciamentos e apagamentos

"Angela Davis". Detalhe de xilogravura de capa de livreto de Daniella Bento.

Por Lucélia Borges

Em minha trajetória como artista visual e pesquisadora das tradições populares, tenho me deparado com muita coisa, e o fato de ser mulher e atuar em meio dominado por homens fez meu percurso ser mais difícil e acidentado do que eu sonhava. Isso não quer dizer que, em meio a tantas tentativas de silenciamento, de desqualificação e de alienação, também não haja apoio, acolhimento, parceria e respeito.

Constatei, não faz muito tempo, que entre muitas pessoas, independentemente do gênero, que se “vendem” como politizadas, combatentes dos apagamentos históricos das minorias,  impera uma discrepância acentuada entre o discurso e a prática, e a indignação, apoio e repúdio são seletivos. Descobri, inclusive, uma palavra nova, manterrupting (*), que se encaixava perfeitamente com a situação pela qual passei, em reunião da Comissão de Salvaguarda da Literatura de Cordel de São Paulo, e para a qual não abaixei a cabeça, contando com o apoio de poucas, mas aguerridas mulheres. 

Violência de gênero, como a sofrida por Marina Silva, nós mulheres sofremos o tempo todo, nem sempre com a mesma virulência, mas raras são as manifestações de apoio enquanto abundam os casos de broderagem.

Silenciamento, apagamento, invisibilização são termos recorrentes, entre mulheres e até mesmo entre alguns homens, para definir a condição feminina no campo das letras e das artes ao longo da História. Mas e quando a apagada é você?

Semana passada, ao buscar uma foto para atualizar meu portfólio, deparei, numa pasta de 2019, com um flyer de um evento ocorrido em Natal (RN), com um boi estilizado em xilogravura em destaque. Ocorre que o tal boi faz parte de uma arte original de minha autoria, intitulada “Barbatão” ou “Boi Misterioso”, em homenagem ao cordel criado por Leandro Gomes de Barros. A xilogravura, uma das primeiras entalhadas por mim, é de 2017, e depois acabou sendo utilizada no livro O sonho de Lampião (Editora Principis), de Marco Haurélio e Penélope Martins.

É possível, olhando a imagem original (acima), identificar a minha assinatura, LU BORGES, que foi apagada. Não há qualquer menção à autoria da imagem, assim como não houve qualquer contato em termos de licenciamento. No cartaz, à esquerda, aparece a logo da Estação do Cordel, ponto de cultura de Natal. Não tenho como saber a data exata do evento, mas acredito ter sido antes da pandemia, pois, como escrevi acima, a pasta, na qual a imagem foi salva, é de 2019.

Recentemente houve outro caso semelhante de uso indevido de uma xilogravura minha, sem identificação de autoria e sem qualquer comunicação.

O nosso trabalho, como sabem os colegas e as colegas de ofício, requer tempo, paciência, pesquisa, e, nem por isso, deixamos de dar o melhor de nós, seja numa arte confeccionada para a capa de um folheto, seja numa ilustração para ser estampada numa exposição ou em um livro infantil.

No caso de misoginia a que me referi no início do texto, fui tratada como infiltrada, entre outras acusações, pelo fato de não ser cordelista e sim xilogravadora, em que pese a xilogravura popular ser reconhecida como patrimônio por ser uma arte associada ao cordel. Quando ouvi um senador, cujo nome me recuso a escrever, dizer que Marina Silva deveria se colocar “no lugar dela”, me lembrei de tudo isso, consciente de que o lugar da mulher é onde ela quiser estar

Sem apagamentos, silenciamentos e a hipocrisia gritante da broderagem conveniente.

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(*) Segundo o site do IBAC (Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento), o manterrupting ocorre "quando  uma mulher está falando e algum homem a interrompe sem deixar com que a mesma conclua o que está dizendo, podendo atrapalhar a sua linha de raciocínio. O manterrupting é uma maneira de tentar desnortear uma mulher para que ela se perca na sua própria fala, acontecendo com mais frequência em reuniões de trabalho e/ou de amigos, fazendo com que a fala da mulher tenha menor validade ou seja desconsiderada".

 

Comentários

  1. Parabéns pelo texto, Lucélia. Infelizmente, a arte, que deveria ser o primeiro espaço a defender a liberdade e a valorizar a diversidade e a voz de cada um, também acabou se tornando um lugar para a prática da misoginia, do preconceito e outras barbaridades.

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  2. Lucélia que lindo blog e lindas xilos! Sempre fui admiradora de Gilvan Samico , um mestre e para mim, a xilo é arte-tão-arte, tão bela e tão importante, tão vigorosa e tão expressiva quanto arte em qualquer outro suporte. Um absurdo vc ter sido roubada numa imagem tão linda! Vamos denunciando. Receba meu abraço carinhoso e votos de muito sucesso.

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  3. Lucélia, dar os créditos autorais a uma obra não é só reconhecer o trabalho de alguém, não é mesmo? É um dever ético e legal. E, para isso, é preciso obter autorização antes de usar. É assim que a banda toca!

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