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Duas lendas de Santo Antônio

Santo Antônio com o Menino Jesus. Matriz. 

Santo Antônio é um dos mais populares santos católicos e é festejado no dia 13 junho, data de sua morte, em 1271. A devoção ao Brasil chegou com os portugueses, espalhou-se rapidamente e é difícil, hoje, uma cidade que não tenha, nos templos católicos, uma imagem deste santo tão querido. A devoção é tamanha que, à diferença de outros oragos, Santo Antônio é festejado não com uma novena, mas com uma trezena, que começa no princípio de junho e vai até o dia 13. 

A xilogravura que desenvolvi para a exposição Vidas em Cordel, do Museu da Pessoa, foi inspirada numa lenda narrada por Dona Santinha, de Lagoa de Santo Antônio, Paracatu (MG), cordelizada por Marco Haurélio. A lenda tem a ver com um motivo muito conhecido das histórias de santos: quando estes não querem que sua igreja seja construída em determinado local, mudam de lugar, indicando a sua preferência.

"Santo Antônio". Xilogravura para o projeto Vidas em Cordel.

Eis o trecho do cordel segundo Haurélio, com base no relato de Dona Santinha:

As folias do Divino,
Com rezas e imperador,
Folias de Santos Reis
Em honra do Salvador
E dos reis magos Gaspar,
Baltazar e Melquior.
 
Por falar em Santo Antônio,
Sua grande devoção
Começa com a chegada
De estranhos à região:
Eram senhores baianos,
Vindos desse estado irmão.
 
Mil setecentos e cinco,
Segundo dona Santinha,
É quando começa tudo:
Gente da terra vizinha
Finca ali sua bandeira,
Fugindo à sorte mesquinha.

Todos vieram de barco,
Depois de longa jornada,
Mas o percurso restante
Foi feito na caminhada,
E na serra da Caieira
Uma gruta é avistada.
 
Foi por Antônio Fonseca
Da Silva o grupo guiado;
Na gruta, havia uma imagem
De um personagem sagrado:
Santo Antônio, padroeiro,
No mundo inteiro afamado.
 
Foi construída uma igreja
Para abrigar a imagem,
Um pouco longe da gruta,
Mas foi perdida a viagem,
Pois o santo deu no pé,
Recusando a homenagem.
 
Buscaram desesperados
Pela imagem do seu santo,
Até que foram à lapa
E estava no mesmo canto
Em que fora descoberto,
Sendo motivo de espanto.
 
Mesmo assim, não desistiram,
Por três vezes conduzindo
O santo para essa igreja
E Santo Antônio fugindo,
Como se dissesse: Não!
E o povo não o ouvindo.
 
Até que a terceira vez,
Quando o povo procurou
Santo Antônio, nessa lapa
Uma pedra desabou,
Vedando a entrada da gruta,
E a teimosia acabou.
 
Fizeram outra imagem
Sem haver mais pandemônio,
Dedicada ao mesmo santo
Devotado ao matrimônio.
Por isso, o local se chama
Lagoa de Santo Antônio.
 
Mas nem só de santo e vela
Vivia a povoação.
Dona Santinha nos conta
Das noites de diversão,
Dos bailes e dos pagodes
Em tempos que longe vão.

Uma história semelhante foi recolhida por Marco Haurélio, junto ao saudoso Antônio Risada, natural de Paratinga (BA), cujo padroeiro é Santo Antônio. Reproduzo trecho de artigo de autoria de Haurélio publicado no site História Hoje, da escritora e historiadora Mary del Priore:

“As lendas de origem de uma comunidade, por exemplo, têm muito a dizer ao nosso povo. É o caso da cidade de Paratinga, na Bahia, cujo surgimento está diretamente ligado à religiosidade popular.

Localizada às margens do rio São Francisco, Paratinga já se chamou Santo Antônio do Urubu de Cima. Isto em 1718, quando deixou de ser arraial, passando a freguesia. A razão do nome incomum: uma imagem do santo português teria sido encontrada por um caçador num tronco de árvore. No galho “de cima”, a ave, de asas abertas, protegia o santo do calor do sol. No local, foi construída a capela onde o santo era venerado. A imagem teria sido deslocada para o santuário de Bom Jesus da Lapa – uma gruta transformada em igreja –, mas sempre retornava para o seu centro de devoção. Suas pegadas ficavam impressas na areia”.

Em ambos os casos, o “santo” rebelou-se contra os devotos, que tiveram de ceder à sua vontade.

Certamente voltaremos com outras histórias e curiosidades sobre os santos juninos. Em junho de 2024, no Espaço Acalanto em São Paulo, por sinal, Marco Haurélio e eu fizemos uma sessão de histórias sobre Santo Antônio, São João e São Pedro, entremeadas de benditos e memórias de nossas infâncias. 

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Obrigada pela leitura!




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Biografia

  Lucélia Borges nasceu em Bom Jesus da Lapa, sertão baiano, e viveu muitos anos em Serra do Ramalho, região do Médio São Francisco, em companhia da bisavó Maria Magalhães Borges (1926-2004), uma grande mestra da cultura popular. Produtora cultural, artista plástica, xilogravadora, contadora de histórias e terapeuta holística, dedica-se à pesquisa das manifestações tradicionais do interior baiano, com destaque para a cavalhada teatral de Serra do Ramalho e de Bom Jesus da Lapa, tema de sua dissertação de mestrado apresentada à Universidade de São Paulo (USP), defendida em 2020 Entre os anos de 2002 e 2006, cursou Letras/Inglês pela Universidade do Estado da Bahia UNEB-BA. Produção cultural Foi idealizadora e curadora do projeto No Sopro da Cultura , realizado em Serra do Ramalho, Bahia, e apoiado pela FUNARTE. O projeto voltou-se à revitalização da banda de pífanos Irmãos Maciel, da Agrovila 07.  O cantor Paulo Araújo e a banda de pífanos Irmãos Maciel. Foi também uma das...