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Procissão de São João na Agrovila 07. Crédito da imagem: Oeste ao Vivo. |
Os festejos de São João, na Agrovila 07, em Serra do Ramalho (BA), começam com a levantada do mastro, dez dias antes da data em que se celebra o Santo: o dia 24 de junho. O mastro é pintado com as cores verde, branca e vermelha, tendo no topo uma bandeira e um estandarte com a representação clássica do padroeiro, aquela em que ele aparece com feições de adolescente. Em seguida à fincada do mastro, a bandeira é hasteada, para gáudio dos participantes. Até o início dos anos 2000, toda a preparação ficava a cargo dos irmãos Manelinho e Aurelino Maciel, que integravam também a banda de pífanos, à época já bastante idosos.
A historiadora Mary Del Priore traz uma informação contrastante a respeito da levantada do mastro no período colonial quando a levantada do mastro era feita pelos jovens:
“Durante
os festejos de São João, [os jovens] ajudavam a erguer o mastro diante da
igreja e disputavam, depois, as prendas aí penduradas, enquanto as moças faziam
adivinhas em copos de água para saber os amores prometidos para a próxima
estação agrícola”.
A
cerimônia da levantada do mastro se inicia com o cortejo, que, antigamente,
saía da casa de Manelinho Maciel, exímio fabricante dos tambores da banda de
pífanos, já falecido. Atualmente, foi assumida por outros membros da família
Maciel, conhecidos popularmente como Burus[1]. O
foguetório anunciava o início dos festejos e, em seguida, o apito do mestre da
banda de pífanos, Aurelino Maciel, irmão do mestre Manelinho, dava o sinal
seguido por todos. Com a morte de Aurelino, o apito já não soa. Enquanto os
tambores e gaitas repicam, cantam-se quadras com louvores e vivas a São João. O
mastro é conduzido sobre os ombros dos devotos.
São
elementos indispensáveis aos festejos a banda de pífanos — responsável por toda animação do festejo a
partir desse dia —, os
atores da Cavalhada, que acompanham o cortejo trajando roupas brancas, para a
famosa encamisada, portando
lanternas azuis e vermelhas, identificando cristãos e mouros.
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Banda de Pífanos Irmãos Maciel. |
O cortejo
percorre as ruas da Agrovila, com festa efusiva, até a frente da igreja. No local, os
cavaleiros ficam a postos em círculo enquanto a banda de pífano continua a
desfiar os cantos que celebram o evento, geralmente com sambas de roda e chulas,
e a fincada do mastro. Erguido o mastro, hasteia-se a bandeira e os cavaleiros
começam uma marcha circular à sua volta. Ora formam uma única roda, outra duas;
circulam no mesmo sentido ou em sentido contrário.
Esse espetáculo dura o tempo necessário para cumprir o fincamento, o hasteamento da bandeira e a exibição dos cavaleiros com suas lanternas. Em seguida, a banda de pífanos se dirige para a igreja, acompanhada de todos os presentes; os cavaleiros, desmontados, também seguem a banda cujos integrantes, diante do altar, da imagem do santo padroeiro, tocam agora o bendito em louvor a São João :
Cantemos em louvores,
Porque Deus assim quer,
Senhor São João Batista,
Ele é filho de Isabel.
Ele é filho de Isabel
E de São Zacarias,
É primo de Jesus
E sobrinho de Maria.
É primo de Jesus,
Batizou-se em Jordão.
Jesus, por ser seu primo,
Lhe deu o nome de João.
Deu-lhe o nome de João
Por ser um nome galante,
A palavra de sua boca,
Ó que luz tão radiante.
Ó que luz tão radiante
Que a Herodes cegou!
Degolou o profeta João,
Mas a luz não apagou.
Mas a luz não apagou
Da fogueira do Senhor!
Ele é o mensageiro
De Jesus Libertador!
De Jesus Libertador
Ele é o mensageiro.
Ó que luz tão radiante
Que alumeia o mundo inteiro!
Alumeia o mundo inteiro,
Do sertão até o mar!
Adeus, São João Batista,
É hora de caminhar!
Note-se
que não há qualquer reza ou cerimônia litúrgica que preceda o
ritual. Não há a tradicional benção do mastro, como ocorre, por exemplo na Festa do Divino da vizinha Bom Jesus da Lapa.
Mantém-se o ritual tal qual instituído pelo povo, marco inicial dos festejos do
ciclo, numa configuração que transpõe barreiras espaciais e simbólicas; cultua-se
a entidade divina não com foco na piedade cristã e, sim, por meio da música,
alegre, sensual, apimentada. Até mesmo o orago se transfigura: de profeta
austero apresentado na Bíblia, praguejador furibundo, reaparece como uma
divindade jovial, festiva, misto dos deuses Átis e Dioniso, representando a
natureza recoberta pelo verde e a farta colheita. Sendo a festa oficialmente
aberta, voltam todos para a casa dos responsáveis pelo mastro, ao som da banda
de pífanos, quando o samba de roda poderá ser ouvido durante toda a noite,
regada a generosas doses de aguardente.
Procissão: saída da casa do Imperador para a igreja. Festa de São João Batista – 2018. Acervo de Silmária Ferreira dos Santos |
A bandeira de São João, vermelha, traz a imagem do santo ainda jovem com o Cordeiro de Deus no colo, figurando a missão de Jesus Cristo, por meio da inscrição latina Ecce Agnus Dei (Eis o Cordeiro de Deus). Ela é conduzida pelos alferes, geralmente por uma pessoa que se “obriga” a recolher os donativos para os festejos. Acompanhado de uma ou duas caixas da banda de pífanos, percorrem não só a comunidade, mas a região. As pessoas recebem o estandarte como se recebessem o próprio santo em suas moradas, tocam-no com as mãos e em seguida fazem o sinal da cruz, sempre acompanhado de pedido de proteção.
Após receberem a doação, os pedintes agradecem com uma percussão em nome de São João. Os donativos são de todas as espécies: dinheiro, galinhas, ovos ou o que mais o devoto tiver às mãos. Nos últimos anos, desde a criação do CPC, a arrecadação de donativos é função do conselho que faz o repasse para o imperador para as demais despesas; também há um declínio na disposição de pessoas que se candidatam à função de imperador; quando não há candidaturas dos juízes para o sorteio, essa função fica a cargo do CPC, que ocorre na casa de um dos membros ou no pátio do colégio. E a festa, que antes ocorria no terreiro da casa do imperador, hoje é na quadra, animada por uma banda que a Prefeitura disponibiliza, interferência alienígena que, aos poucos, vem minando os alicerces da tradição.
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Samba de roda da Agrovila 07. |
O
novenário se inicia no dia seguinte à levantada do mastro. São nove noites com
nove grupos homenageados a cada noite. Assim, há noite das crianças, noite dos
aposentados, noite dos jovens, noite das mulheres solteiras, noite dos casados,
dos lavradores/agricultores etc., tendo sempre uma ou duas pessoas responsáveis
pela noite. O símbolo das noites de São João é um ramo, ramalhete, óbvio
emblema dos deuses da fertilidade. Na primeira noite, todos se encontram na
igreja e, terminada a celebração, conduzem o ramo à casa do noiteiro daquele dia. O ramo é levado
com muita alegria, e no cortejo, acompanhado pela banda de pífanos, os devotos
entoam cantigas e gritam vivas, sempre na ordem: “Viva São João Batista! Viva a
noite tal! Viva o noiteiro! Viva a banda de pífanos!”. Uma dessas cantigas é
conhecida em todo o Brasil:
Minha sabiá, minha zabelê,
Toda meia-noite eu sonho com você.
Ô se você duvida,
vou sonhar pra você ver.
Bate, bate coração,
Não me arrebenta o peito.
Onde cabe tanta mágoa
Num palácio tão estreito.
Minha sabiá, minha zabelê,
Toda meia-noite eu sonho com você.
Ô se você duvida,
vou sonhar pra você ver.
Você de lá, eu de cá,
Riacho passa no meio.
Você de lá dá um suspiro,
Eu de cá suspiro e meio.[2]
Na casa do
noiteiro tudo já está preparado: comilanças,
bebidas e o local do ramo, geralmente acomodado na sala. Após a recepção, com a
exibição da banda, come-se e bebe-se. Em seguida, a roda de samba é formada e
todos dançam e cantam até altas horas. O ramo ficará aos cuidados do dono da
casa até à noite seguinte, quando será conduzido, também com a banda de
pífanos, até a igreja. Lá, repete-se a cerimônia litúrgica e, ao final, o ramo
é conduzido à casa do segundo grupo homenageado. E assim será até o dia 23 de
junho.
O imperador
do ano seguinte é sempre escolhido mediante sorteio, que acontece no dia 24,
último dia depois da celebração. Ele é o responsável por todo o festejo, e está
entre as suas obrigações receber os devotos em sua casa, oferecer o “banquete”
aos cavaleiros, aos membros da banda de pífanos e aos convidados, além de
muitos devotos que participam do almoço. Entretanto, o interesse tem diminuído
dadas as dificuldades em angariar fundos.
Assim como
na Festa do Divino de Bom Jesus da Lapa, a Cavalhada é parte integrante. Os
cavaleiros participam dos principais momentos da festa, desde a levantada do
mastro. O seu momento máximo acontece nos dias 23 e 24 quando representam em
campo, em frente à igreja, espaço mantido para essa
finalidade, a Cavalhada.
A alvorada acontece no romper do dia 24, com foguetório intenso anunciando o grande dia; a banda de pífanos e vários foliões saem às ruas, dançando e cantando. Os motivos musicais, como estes versos do samba de roda, nem sempre remetem ao santo, estando mais próximos do lado profano da festa:
Levanta a saia, muié,
Não deixa a saia moiá!
A saia custou dinheiro,
Dinheiro custa ganhá!
A
caminhada termina na casa do imperador, que já aguarda com o desjejum. Na festa
de São João Batista, o profano e o sagrado estão quase indissociáveis, integrados
numa “coexistência harmônica”, na qual devotos e festeiros exercitam-se,
magnificando seu papel social, em que os valores da fraternidade, da amizade e
da hospitalidade são celebrados e exaltados.
REFERÊNCIA:
DEL PRIORE, Mary. Histórias da gente brasileira. V. 1: Colônia. São Paulo: Leya, 2016.
[1] Etimologia desconhecida. Mesmo os
mais velhos não sabem precisar a origem. É possível que se trata de um
apelativo infamante que foi ressignificado pela própria família Maciel e hoje é
usado como afirmação identitária.
[2] A título de comparação,
recomenda-se a audição da canção Zabelê,
de Gilberto Gil e Torquato Neto, gravada por Gil em 1967.
Postagem extraída e adaptada a partir da minha dissertação de mestrado, Inimigos Fiéis: rupturas e permanências nas Cavalhadas do Médio São Francisco - BA (2020), defendida na Universidade de São Paulo.
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