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Xilogravadora, a palavra que não existe

Se você buscar no Google a palavra xilogravadora vai se deparar com os seguintes resultados:

Exibindo resultados para Xilogravador

Ou Será que quis dizer Xilogravador?


Se insistirmos, com base na palavra digitada na caixa de pesquisa, o Google é mais generoso:

Em vez disso, pesquisar por xilogravadora

E, aí, a coisa começa a se complicar para o “nosso” lado:

Resultados da pesquisa

Dicionário

Definições de Oxford Languages · Saiba mais

xilogravador

/ô/

adjetivo substantivo masculino

1.           ARTES GRÁFICAS•GRAVURA

m.q. XILÓGRAFO.

Semelhantes

Xilogravurista

Sobre xilogravadora, a palavra digitada, o Google, nos primeiros resultados, não só não nos dá resposta alguma, como direciona toda a pesquisa para o universo masculino. Ou seja, para o Google, ou melhor, no Google, nós, mulheres da xilogravura, não existimos.

Sabemos que o Google apenas reproduz, em seu banco de dados, o que é comumente publicado/ “utilizado”, ou seja, os resultados refletem a realidade que opera nos campos práticos de nossa vida. Quando se trata da presença feminina em diversas áreas, há que se considerar que o reconhecimento de suas trajetórias, mesmo com lacunas, é uma conquista recente. O apagamento e silenciamento, nos diversos meios, ainda prevalece. No caso da xilogravura, se associada à literatura de cordel, a coisa só piora.

Sendo uma arte milenar que precede e inspira várias outras técnicas, com destaque para a invenção da prensa que propicia a evolução do conhecimento, a importância da xilogravura não pode ser mitigada. Ocorre que, nesse processo de produção e difusão do conhecimento, muitas mulheres, em diferentes culturas e em tempos distintos, marcaram presença, mas, quase sempre, seus nomes foram apagados e sua contribuição “esquecida”.

Mas, por enquanto, consideremos aqui o campo da xilogravura popular nordestina, e, obviamente, brasileira, reconhecida como patrimônio cultural imaterial do Brasil juntamente com a literatura de cordel, pelo IPHAN, em 2018.

Xilogravura para capa de livro de Cacá Lopes.

Comecemos pela palavra mesma, xilogravura, do gênero feminino, assim como literatura de cordel. Em nosso idioma, o português, muitos dos elementos que a compõem, ou que orbitam em torno dela, estão igualmente relacionadas ao feminino: madeiragravuraferramenta, goiva, matriz, cópia, impressão, tinta, e por aí vai. Consoante a isso, mesmo que haja no universo da pesquisa sobre a literatura de cordel muitos estudos dedicados à xilogravura, quase todos estão voltados unicamente à produção masculina.

Se você pesquisar no Google (olha ele aí de novo!) Acadêmico, há até menção a estudos sobre as mulheres na xilogravura, mas somente no campo semiótico ou da representação. Como sujeitos produtores de arte e de conteúdo, inexistimos também nesse campo. Mesmo nos ciclos de debates sobre a presença feminina no universo da literatura de cordel, encapados por mulheres, percebe-se que há pouco ou nenhum espaço para a produção das mulheres xilogravadoras.

Essa escassa referência não fica restrita à matéria do estudo ou menção, mas também à produção: nas editoras (mesmo aquelas coordenadas por mulheres), nos debates com pautas referentes ao universo da literatura de cordel, nos congressos e conferências, a produção feminina até chega a ser mencionada, mas como um adendo sem maior relevância.

Lucélia em sua sala/ateliê.
Foto: Francisco M. Costa. 

É preciso, porém, destacar algumas inciativas pontuais que, aos poucos, vão ajudando a desconstruir os preconceitos que, de tão arraigados em nosso meio, são naturalizados até pelas próprias mulheres, mesmo as autodeclaradas ativistas: importante marcos no processo de reconhecimento e valorização foram alcançados no século XXI, e, entre eles, podemos citar a mostra Mulheres na Xilogravura realizado pelo SAP no Museu do Folclore em 2024 (para acessar o catálogo, clique aqui).

Capa do catálogo da mostra Mulheres na Xilogravura.

Vale ressaltar aqui que o espaço da xilogravura popular como um todo ainda não é garantido, independentemente do gênero, e, nesse caso, irmanamo-nos a todos os produtores que respeitam a nossa presença e a nossa existência.

Para fechar, salientamos que o Google não cria conteúdo; ele apenas espelha aquilo que é produzido, ou seja, é o reflexo de uma sociedade injusta em que o machismo e a misoginia exercem amplo domínio, a despeito das já mencionadas conquistas.

Em outra oportunidade, falaremos sobre as apropriações culturais, a farsa da xilogravura digital (sic.), o uso de Inteligência Artificial à guisa de xilogravura, enfraquecendo um dos elos e, consequentemente, toda a cadeia criativa da literatura de cordel, e o uso indevido de imagens e desrespeito aos nossos direitos mais elementares.

A quem chegou até aqui, obrigada.

E sim, senhor Google, eu quis dizer xilogravadora.

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Biografia

  Lucélia Borges nasceu em Bom Jesus da Lapa, sertão baiano, e viveu muitos anos em Serra do Ramalho, região do Médio São Francisco, em companhia da bisavó Maria Magalhães Borges (1926-2004), uma grande mestra da cultura popular. Produtora cultural, artista plástica, xilogravadora, contadora de histórias e terapeuta holística, dedica-se à pesquisa das manifestações tradicionais do interior baiano, com destaque para a cavalhada teatral de Serra do Ramalho e de Bom Jesus da Lapa, tema de sua dissertação de mestrado apresentada à Universidade de São Paulo (USP), defendida em 2020 Entre os anos de 2002 e 2006, cursou Letras/Inglês pela Universidade do Estado da Bahia UNEB-BA. Produção cultural Foi idealizadora e curadora do projeto No Sopro da Cultura , realizado em Serra do Ramalho, Bahia, e apoiado pela FUNARTE. O projeto voltou-se à revitalização da banda de pífanos Irmãos Maciel, da Agrovila 07.  O cantor Paulo Araújo e a banda de pífanos Irmãos Maciel. Foi também uma das...