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J. BORGES: o Nordeste em traços e cores

Com J. Borges e seu filho Pablo Borges.
Espaço do Cordel e Repente, Bienal do Livro de SP (2018).


No dia 26 de Julho de 2024, o mundo é acordado com o impacto da notícia da partida do mestre J. Borges. A comoção causada é um misto de lamento e reverência àquele que já se eternizara em vida. Patrimônio Cultural de Pernambuco, do Brasil e do mundo, José Francisco Borges teve uma existência caleidoscópica: agricultor, pedreiro, pintor, carpinteiro, fabricante de brinquedos, cordelista, impressor e editor de folhetos, rótulos e diversos produtos gráficos, xilogravador, artesão e artista. Como poucos, ainda em vida, presenciou o reconhecimento de sua obra. Sua vida foi uma verdadeira jornada do herói, cujo fio condutor leva a impressões de mundo, do vivido ou do sonhado, no papel ou na madeira, artes em que se constituiu num grande contador de histórias. 

J. Borges, memória excelente, característica de quem viveu sob o mundo encantado das narrativas orais, contava, em impressionantes detalhes, as tessituras do universo da palavra dita ou cantada, dos seus processos de criação e dos mestres da poesia metrificada ou gravada; falava, ainda, das dificuldades e também daqueles que lhe abriram portas e parcerias. Por isso que, com sua partida física, somadas às de José Cavalcante Ferreira, o Dila, e José Costa Leite, o universo da xilogravura nordestina perde a tríade fundadora, os mestres mais expressivos da escola pernambucana. Conheceu a outra escola, a formal, num curto período de dez meses, o suficiente para aprender a “ler, escrever e contar”, como ele mesmo atesta e Maria Alice Amorim registra no J. Borges entre fábulas e astúcias, que, à página 139, traz a perfeita síntese do grande artista: “As mãos de poeta, a cabeça de artesão, o olho de memorialista, o coração de narrador fazem da vida astúcia, engenho e arte”.

O artista quando jovem – Certo é que Borges nunca mais abandonou a leitura, sendo a inteligência um traço marcante que ele fazia questão de exaltar. Criado pela avó materna, Maria, que exigiu da filha, também Maria com complemento de Francisca, a entrega do seu primeiro neto. E assim, até os dezenove anos, Borges viveu em sua casa. Irmão mais velho de uma turma de dezesseis dos quais sobreviveram apenas dez, Borges experimentou a liberdade e sofreu as mazelas pelas quais passaram os meninos de sua época. E, apesar de mudar de cidade algumas vezes, jamais quis sair de seu estado.

Primeira xilo entalhada por J. Borges

Sobre a literatura de cordel, arte que conecta mundo, Borges afirma que, desde tenra idade, era embalado pelas leituras dos cordéis por seu pai. Como todas as histórias povoavam sua mente, quando foi para a escola, aos doze anos, levou na bolsa seus cordéis. Mas só foi escrever seu primeiro folheto, O encontro de dois vaqueiros no sertão de Petrolina, em 1964, contando com uma capa do amigo Dila. Um ano depois, por falta de recursos para pagar o ilustrador, ele mesmo lixou o taco de umburana, riscou e cortou o que seria a sua estreia na arte que o imortalizou: a capa do folheto O verdadeiro aviso de Frei Damião sobre os castigos que vêm. 

J. Borges no Encontro com o Cordel. SESC 24 de Maio, 2018.

A partir de então, o que começou por necessidade passou a ser sua “tela” para gravar o fabuloso imaginário nordestino, repositório da Idade Média, do bestiário fantástico, igualmente cenário de carências e pujanças. Retirantes, saberes e fazeres do Nordeste, festas populares, sagas de cangaceiros, tudo vira arte nas mãos de J. Borges. Os temas que abraçou ganharam espaço na época em que o Brasil olhava para si mesmo, descobrir-se, época do Cinema Novo e, mais tarde, do Movimento Armorial, de um lado, e do Tropicalismo, de outro.  É graças ao grande Ariano Suassuna que o Brasil “de cima” passa a olhar com outros olhos para a obra de J. Borges. O poeta-gravador, por sinal, não economizava palavras para expressar sua gratidão pela visibilidade e interesse despertados pela xilogravura nordestina e pela projeção alcançada por sua obra.

Do cordel aos Irmãos Grimm – Mais celebrado no campo da arte visual, J. Borges compôs mais de trezentos cordéis, sendo os mais celebrados A moça que dançou depois de morta e A chegada da prostitua no Céu, o segundo um raro caso em que a gravura nasceu antes do folheto. Ilustrou diversos livros, com maior destaque para o infantil O lagarto, do vencedor do prêmio Nobel José Saramago, O livro dos abraços do uruguaio Eduardo Galeano, além de uma luxuosa edição da obras dos Irmãos Grimm.  Borges relatava sempre o quão prazerosa eram as trocas com Eduardo Galeano nesse período. Em 2002, foi escolhido entre os artistas que ilustraram o calendário anual das Nações Unidas da UNESCO.

Ariano e J. Borges. Imagem: Cultura Brasil.

Desbravador, visionário e atento às mudanças, J. Borges investiu na comercialização e gestão de sua arte e desenvolveu a coloração – vários tons – numa mesma matriz. Folheteiro por muitos anos, criou em Bezerros o maior centro de xilogravura popular do Brasil, que inclui ateliê, oficina e museu, administrado por sua família. Na arte de entalhar, iniciou irmãos, filhos e muita gente mais. Pai de vinte e quatro filhos, muitos batizados em homenagem às personagens do cordel, como Marili e Manassés, ou aos amigos queridos, incluindo Ariano, muitos deles estão envolvidos com as artes gráficas em diversas etapas. Xilogravadores como o pai, Manassés, já falecido, J. Miguel, Ivan, Cícero José, Pablo e Baccaro são exemplos de um projeto gráfico editorial tocado com talento e competência. Borges se faz, assim, eterno em sua arte, exposta em alguns dos principais museus do mundo, e nos filhos que perpetuam o seu legado.

 

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